27 fevereiro 2011

Ré Confessa.

O sangue escorreu devagar por minhas mãos e fundiu-se com o esmalte, com a pele e com a alma. A faca jazia há poucos metros de mim, tão suja quanto se houvesse sido mergulhada em sangue - o que de fato acontecera - e a sombra sobre a parede apenas rascunhava o monstro que eu era. Meus olhos estavam alertas, elétricos e vermelhos como a injeção de loucura que me tomara o ser e o pensamento. Meu riso podia ser escutado a quadras e o sorriso era maníaco, satisfeito e cruel. Eu era uma louca mulher, armada e sem juízo, sentada na sala de estar com a arma do crime e um copo de sangue, admirando a aliança sem valor ao lado do corpo do homem que eu amara por anos, talvez eras, até decidir que bastava de ser apática. Ele merecia punição e era quem eu devia fazê-lo pagar. E eu fiz. E bebi à isso. E chamei a morte para brindar comigo.

20 fevereiro 2011

Eu sempre acreditei

Eu sempre achei que você queria mergulhar fundo comigo, se perder, me encontrar, procurar por algo que fosse novo e só nosso. Eu sempre achei que você fosse me dar a mão preu não cair, que você ia me segurar e que ia respirar nosso ar, viver nossa vida, sentir nossa dor e nosso gozo, sempre junto, sempre vivo, sempre você e eu. Eu sempre pensei que você me amasse. Sempre achei que fosse incondicional. Eu sempre acreditei em mentiras. E você nem pra me contar. Nem pra me dizer. Nem pra me amar.

15 fevereiro 2011

Letrada.


- Eu não sou escritora...
- Aham, - Ele respondeu, admirando-a do seu confortável lugar na cama. - Eu acredito em você.
- Não, é sério mesmo... Eu só escrevo no meu tempo livre.
- Você deve ter bastante tempo livre então. Eu vejo tipo uns 5 cadernos daqui.
- Eu não uso todos ao mesmo tempo. - Ela disse, finalmente levantando os olhos da folha na qual escrevia sem parar há cerca de 20 minutos.
   Ele sorriu pra ela.
- Suas paredes são forradas com páginas de livros. Você tem milhões de prateleiras abarrotadas, caixas com cadernos e agendas, canetas em todos os lugares...
- Eu sou um pouquinho compulsiva, é só isso.
- Um pouquinho?
 Ele levantou a sobrancelha, achando graça.
- Ah, que coisa. Eu tenho ideias o tempo todo, as frases se organizam e viram histórias inteiras na minha cabeça a todo momento. Eu simplesmente preciso botar pra fora.
- Eu não estou reclamando, baby, não mesmo.
- Não?
- Não. Eu acho sexy. - E ela riu. - De verdade, eu acho bonito que você tenha essa relação tão intima com suas palavras e pensamentos.
- Não fale assim como se eu fosse alguma rata de biblioteca...
 E ela mordeu a caneta, como quem pensa. Ele achou que ela estava montando outra história, mas era só charme. Ele suspirou.
- Vem cá, nerd.
- Ah, para vai... - Ela pediu, mas largou o papel e a caneta e deu a volta na escrivaninha para se juntar a ele na própria cama. Ele a enrolou completamente entre os braços e beijou seu rosto, sorrindo.
- Você é a minha nerd e não há nada que você possa fazer com relação a isso, baby.
- Até parece.
- O que, você não é minha?
- É claro que eu sou... - E ela se virou no abraço para olhá-lo nos olhos. Suas mãos usaram seu peito como apoio. - Eu sou ridícula e completamente sua.
- Então pronto. Minha nerd. - Ela suspirou e murmurou uma resposta qualquer. - Eu só tenho medo...
 Ela o encarou bem fundo e ele se obrigou a sorrir antes de continuar.
- Só tenho medo de você preferir esse mundo de papel e letra ao mundo real, o mundo em que eu estou aqui pra você.
  Ela acariciou seu rosto e sorriu seu sorriso mais cheio de amor e verdade, simplesmente por que queria que ele visse o quanto ela estava sendo transparente.
- Eu não tenho nenhum motivo - ou vontade - de me perder num mundo que você não está.
- Tem certeza? Por que eu ouvi dizer que esses caras literários são o sonho de consumo de toda nerd...
- Amor!
- Tá bom, tá bom. Eu acredito em você.
- Que bom. Por que eu estou sendo sincera. - Ele sorriu. - Eu não preciso inventar nada, se o paraíso é aqui.

02 fevereiro 2011

Rosas.


As flores chegaram com o correio, e o carteiro sorriu quando as entregou. E eu, chocada, olhava pra ele como se fosse um extraterrestre. Ele me estendeu uma planilha pra assinar, e eu o fiz, com a mão meio mole, os olhos ainda nas flores. Rosas. Alguém me enviara rosas. Alguém, mas quem? Meus olhos correram o papel, procurando um cartão. Era claro que teria um cartão. Não é? Não. Não havia nenhum. Recebi flores, mas recebi flores de ninguém. Ora pois, por que alguém me mandaria flores? Eu não merecia flores. Eu não era ninguém. Virei-me para o carteiro, procurando uma explicação. Ele ainda sorria.
- Recebi flores.
- Eu sei, madame. - Ele disse, com um sotaque forte de gente do interior. Pisquei.
- Quem mandou?
- Não tem cartão, madame?
- Não tem cartão.
- Então não sei madame.
- Mas... mas... ninguém me manda flores.
- Alguém obviamente mandou, madame.
- Eu sei.
- Pense bem, senhora, não conhece ninguém que lhe mandaria flores?
- Não, não mesmo.
- Não conhece nenhum rapaz bonito que goste do seu sorriso, madame? Tem certeza que nenhum coração apaixonado te espera na esquina, que nenhum par de olhos vigia o seu andar?
- Eu não sei.
   E meu tom de voz era um lamento.
- Ora, madame... Parece óbvio pra mim que alguém anda amando a senhora.
- Amando? Só por causa de umas flores?
- Sou homem simples, madame. Só sei de coisa simples. No meu dicionário, flor quer dizer amor.
  Refleti.
- Mas entao alguém não deveria ter vindo junto com as flores? Pra sorrir pra mim um pouco e me falar de algum amor?
- Talvez alguém devesse, madame. Mas o que é o romantismo sem um pouco de misterio?
- Mistério?
- Um admirador secreto, madame. Lá na minha cidade as mocinhas novas como a senhora se desmancham por alguém que lhes ame assim em silencio, assim em presentes, assim em flores.
- Um admirador, hein... É, acho que é romantico, sim. Embora seja um pouco frustrante.
- Mas é um bom motivo pra sorrir, não é, madame?
- Sorrir?
- Ora, posso dizer pra senhora que todo homem apaixonado gosta de ver o sorriso da moça que ama. Faça esse favor pro seu admirador. Sorria. Você não acha que é por isso que esse alguém lhe enviou flores? Pra fazer seu dia um pouco mais feliz?
 Refleti por um minuto antes de fazê-lo.
- É. Recebi flores. O minimo que posso fazer para retribuir é sorrir um pouco, não é? Seja quem seja, se importou pelo menos um pouco. Ou talvez um tanto.
- Estou de acordo, senhora. Além do mais, a senhora tem um sorriso muito bonito. Aposto que tem alguem por aí bem feliz por ele.
- Obrigada.
- Só faço meu trabalho, madame.
- Bom trabalho, então.
- Então boa tarde, madame.
- Boa tarde.
 Ele fez uma mesura no boné do uniforme antes de me dar as costas e sair pela rua assobiando, parecendo feliz como ninguém com a rotina do mundo. E ele estava mesmo. Posso desconfiar que me ver sorrindo lembrou a ele um pouco da sua terra, da sua menina, do seu próprio amor. Ele, um carteiro comum, homem comum, não costumava tropeçar assim no amor. E o amor era tão bonito. Tão quente. Tão cheio de flores. E de sorrisos.

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