26 fevereiro 2013

Cinzas de Boate


E naquela quarta-feira de cinzas, cercada dos amigos mais feitos de amor, ela escuta aquele comentário que a deixa perceber que, meses atrás, foi abandonada na pista de dança. Uma daquelas histórias bem colocadas que fazem a gente ter uma epifania tardia de uma noite de dança e bebida e música alta demais, incontáveis noites antes. Ah, aquilo era um perdido. Era um adeus sem palavras. Era um "se a gente se encontrar de novo, posso dar uma desculpa e simplesmente te beijar".
Ela se sente estúpida, porque tal coisa nunca havia lhe ocorrido. Nem a sombra do pensamento. É que ela nunca entendeu por que eles se dão ao trabalho. São duas da manhã, ela já está bebendo - embora normalmente não o faça - e ela sabe que aquele não é o cara com quem ela vai se casar, ter filhos e morar num castelo, não importando quão azuis os seus olhos sejam, ou quão maravilhoso é o sorriso.
A verdade é que ela só quer um beijo (ou vinte) e um abraço (ou oito), um elogio bem colocado, um sorriso que vai aparecer entre algumas canções, algum balançar suave de uma dança de dois. Ela nunca entendeu por que eles tem que alimentar aquela esperança boba, por que tem que pedir o telefone, fazer promessas, contar histórias. Ela não está esperando nada deles. Ela sabe que eles não prestam. Mas ela é ingênua e terrivelmente inocente, e, quando eles falam, ela acredita, e acaba esperando pela ligação que nunca vem e se perguntando se o problema é com ela. Se foi falta de alguma coisa ou excesso de outra.
Mas é bom pra ela, a menina boba, saber dessas coisas, ter dessas epifanias, desses momentos raros de completa iluminação. Na luz colorida da sua boate preferida, você não vai se apaixonar – não por nada que vá durar mais que algumas canções. Lição aprendida?

19 fevereiro 2013

De intensidade e universos paralelos.

- É só que ela é muito intensa. Eu não sei se consigo lidar com isso.
Ele diz, peito comprimido, pesado, culpado.
- Está dizendo que ela é demais pra você?
O silêncio durou um segundo.
- Não! Não foi isso.
- Cara, foi o que você disse.
 E o amigo deu-lhe um soco no braço, sorriso no rosto.
- Não seja idiota.
- Bem, foram suas palavras.
- O que eu quero dizer é... Eu não acho que estamos vivendo no mesmo plano. É quase como se estivéssemos em universos paralelos, mas que não são iguais.
 A expressão do amigo era desacreditada.
- E agora você ficou todo metafísico, não fez nenhum sentido e está começando a soar como uma garotinha.
- Cala a boca.
- Estou só deixando as coisas claras. Primeiro você diz que não pode com ela, depois começa a soar como uma adolescente... Dá pra deixar um cara preocupado.
 O amigo revira os olhos.
- Não é isso. É como se nós não falássemos a mesma língua  Ela gosta de outras coisas, frequenta outros lugares, escuta musicas diferentes. Nós não concordamos em nada, temos que forçar um meio-termo em tudo... Eu meio que esperava que fosse mais natural. Mais fácil. E não é que não valha a pena, por que vale, mas eu fico preocupado com ela. Fico preocupado por que não acho que a esteja fazendo feliz. E ás vezes eu me pergunto se nós não devíamos deixar tudo isso pra lá, desistir dessa coisa que machuca a gente. Ir embora mesmo, sem olhar pra trás.
- Bobagem.
- Não é, cara...
- É sim. É só olhar pra ela. Dá pra ver que ela está feliz.
- Eu não sei. Eu não sei o quão feliz dá pra ser quando as coisas estão assim tão... difíceis. E se dá pra ser mais, eu quero que seja. Por que, droga, eu amo aquela mulher, e tudo o que eu quero pra ela é de verdade, é fácil, é simples.
- Você é um idiota.
- Como?
- Idiota. E egoísta. Quero dizer, você nem está se dando ao trabalho de se perguntar o que ela quer aqui.
  E o amigo ficou mudo, parecendo completamente perdido.
- A Ana é completamente o tipo de pessoa que só faz coisas que fazem bem. Acredita em mim, se ela não estivesse feliz, vocês não estariam juntos.
- Não sei não, Miguel...
- E não vem com essa baboseira de "tinha que ser fácil". Relacionamentos são uma droga e as pessoas tem que fazer concessões. Elas tem que ceder e ás vezes é uma merda. Ninguém nunca falou nada sobre fácil. Você escuta as pessoas falando que "valeu a pena", não que foi "mamão com açúcar".
  O amigo pareceu refletir nas palavras por um momento, a expressão "isso faz todo o sentido" estampada por todo o rosto.
- Você está certo.
- É claro que eu estou. - E seu tom de voz era óbvio. - E agora que nós já chegamos ao final dessa palhaçada, você pode parar de agir como uma menininha.
- Eu não estou...
- Está sim.
  Miguel responde, batendo no boné do amigo e forçando a aba tão pra baixo que, por um momento, ele não consegue enxergar nada além dos próprios sapatos. O amigo resmunga um palavrão enquanto acerta o chapéu.
- Escroto.
- Viadinho.
   Mas, como sempre, eles estão sorrindo.

03 fevereiro 2013

Azul, muito azul.

(...)
Sinto seus olhos buscando os meus, mas não sei se já sou capaz de mergulhar no azul sem me perder. Nunca aprendi a nadar e essa coisa de azul-mar traz os arrepios mais loucos a minha pele. Evito-o por um segundo mais do que ele pode aguentar. Posso escutar quando ele suspira (e guardo eu o meu suspiro, por que o dele tem ar e peito mais que suficiente por nós dois).
“O o que eu quero realmente saber é se você vai parar de evitar os meus olhos e me deixar te beijar. Sabe, essas coisas que estão nas entrelinhas. Essas mensagens simples que você não está recebendo”.
                Contenho a urgência de revirar os olhos ou dar uma risadinha. Estou nervosa, me sinto patética e muito tentada a por meus braços em volta do seu pescoço, mandar a cautela às favas e ignorar o fato de estarmos sentados na porta do apartamento do meu tio, nas escadas, onde minha família pode facilmente me avistar, ralhar, fazer piadas e toda sorte de comportamento que me deixará envergonhada por eras inteiras. Mas a tentação é forte e eu a quero para mim, para abraça-la apertado e mostrar a ela minha melhor cara de coragem.
Sendo assim, eu mesma aproximo nossos rostos, eu mesma colo nossos narizes e respiro fundo a respiração que sai da gente, acaricio a pele que vai por debaixo dos meus dedos e me deixo enlouquecer por um segundo com a proximidade. Mantenho meus olhos abertos por uma estação a mais para observar bem de perto o azul-água que me atraiu desde o primeiro momento, e finalmente me jogo no mar profundo dos lábios que tomam os meus.
E nosso peito eclode em risadas antes mesmo que eu sinta palpitar o coração que bate por baixo. Por algum motivo, rir nos parece terrivelmente natural. Talvez seja o corredor, ou a posição, ou o modo como nossas mãos ainda estão entrelaçadas e colocadas por dentro dos meus cachos, no meu rosto, no meu coração. E ele me toca e eu só consigo sorrir feito boba e o azul parece refletir em todos os lugares que eu olho. E está tudo bem. Dizem que azul dá sorte. E é ano novo, afinal de contas. 

Alguém sempre chora (eu)

Ninguém entende minha depressão e ninguém leva a sério a tristeza que tem me comido viva. Eles acham que é exagero. Eles acham que é moda, que é truque, que é brincadeira de criança. Eu já cresci. Não brinco mais comigo mesma. Não brinco mais com meus sentimentos. Não me escondo atrás de paredes, canções, sorrisos. Agora eu me exponho, eu grito por ajuda, eu me sacudo em pontos de ônibus e em bancos de couro, eu deixo cair as lágrimas. Eu ando por aí com os braços estendidos procurando a tal da salvação. Eles acham que eu exagero. Eles acha que eu tô bem, que eu tô saudável, que eu tenho que tomar jeito. Eu acho que eles não tão me vendo. Eu acho que eu já parti antes mesmo de resolver ir embora. Eu acho que eu já morri. Eu acho que ninguém liga.

02 fevereiro 2013

Consultório.


Louise adentrou, sozinha, o consultório médico familiar. Tremia de nervoso e tinha lágrimas nos olhos, mas manteve a compostura ao sentar-se na única cadeira à frente da mesa do médico - embora o tenha feito antes mesmo que ele a convidasse a fazê-lo. Ele tentou abrir um sorriso para tranquilizá-la, mas ao ver que não adiantaria abandonou a tentativa.
Não fazia sentido dar-lhe falsos sorrisos ou desculpas.
- Aqui está o envelope com os seus exames. – Louise estendeu a mão para o envelope grosso familiar, sem realmente se atrever a olhar nos olhos do médico. – Como deve saber, a análise não foi fácil.
- Não fique me enrolando, por favor, Doutor. - Ele se encolheu com a frieza das palavras, mas sabia que não poderia culpá-la. O medo devia estar comendo-a viva. - Quero saber o que tenho.
- Você tem um tipo raro de câncer, Louise. – Ela suspirou, não parecendo surpresa, mas terrivelmente derrotada. O coração dele apertou.- Mas não deve se render. Ainda existe uma chance. Você pode operar...
- Quanto tempo ?
- A operação aumentaria as chances de...
- Me diga quanto tempo eu  ainda tenho, Doutor.
- Louise, se você operar pode...
- Não vou me submeter a uma operação e você sabe disso.
Ele mandou às favas a parcialidade, e a voz dele saiu exasperada.
- Porque não, Lu? Embora seja arriscado, existe uma boa chance que a operação vá...
- Não teria coragem de me submeter a isso e ainda sim estar fadada ao fim, Daniel. E eu poderia morrer na mesa... Sei bem quais são os riscos.
- Como pode...?
- Você é o terceiro medico que procuro, Dani. Acompanhei a formação desse câncer e soube, desde o primeiro momento, que não poderia lutar contra ele. O primeiro médico disse que ele estava numa área que não poderia ser operada. O segundo disse que era possível, mas que meu corpo provavelmente não sobreviveria à uma operação. Ele me apresentou todos os laudos e riscos e parâmetros médicos que podem existir. Na verdade, busquei você por que é meu amigo e sei que daria o máximo que pudesse para que eu... – A voz dela sumiu, e ele só podia imaginar o quanto aquilo deveria estar doendo.  – Só me diga quanto tempo ainda tenho, Dani. Por favor.
O silêncio se pendurou entre eles por um segundo que durou uma vida.
- Pouco menos de um ano, querida. – Ela suspirou e abaixou a cabeça, contendo as lágrimas que queriam descer como cascatas pelo rosto bonito. – Sinto muito, Louise. Você sabe que faria qualquer coisa pra evitar isso.
    Ela tentou sorrir, mas não foi bem sucedida como esperava. Ele sentiu o desespero invadir o peito diante do sorriso falso e sofrido da morena.
- Louise, por favor, opere. Se você operar logo, ainda temos chance de... – Ele se calou. - Eu posso fazer isso, Lu. Posso salvar você.
- Não vou operar, Dani. Não quero perder minha vida numa mesa de operação, sem nem ao menos tentar aproveitar o tempo que me resta.
Ele girou a cadeira do consultório de modo a encarar a janela que dava vista ao céu nublado da cidade bonita demais para aquela situação horrível. E na luz branca os prédios ao redor brilhavam cinza e sem vida, como se a que guardassem estivesse se esvaindo devagar. Assim como a mulher a sua frente, cuja vida ia embora sem que ele pudesse impedir.
 Droga, ele queria ajudá-la, mas sabia que ela nunca deixaria. Mas ele não queria e nem podia, simplesmente, deixá-la desistir. Abaixou a cabeça, tentando achar uma possibilidade. Ouviu Louise fungando atrás de si, as lágrimas finalmente abrindo caminho pelo rosto que ela tentou tanto manter incólume. E a verdade era que, mesmo em lágrimas, ela ainda era a mulher mais bonita que ele já vira.
- Não se preocupe tanto comigo, Daniel. Não é sua culpa. Vou ficar bem. - Ela deu uma risada nervosa. - Assim que conseguir parar de chorar.
- É claro que eu me preocupo, Lu. Eu sou seu médico. - E o eu te amo, ficou subtendido.
 Ele sorriu e lhe segurou as mãos esguias sobre a mesa, e a doçura do toque arrebentou as ultimas travas que a mantinham inteira. Chorou tudo que tinha, constatando que, acima de tudo, amava aquele homem.
- O que pretende fazer, querida?
- Fugir. – O médico olhou pra ela, sentindo o coração apertar. – Eu só quero fugir desse lugar e dessa vida que tenho, Dani. Quero ir pra qualquer lugar onde eu possa respirar e viver, pelo menos um pouco. Pelo tempo que eu tenho.
- Quero ir com você.
- Eu adoraria... mas não vou deixar que faça isso.
- Não estou pedindo permissão, Louise. Estou informando que vou.
- Não.
- Louise, não seja ridícula. Eu não vou me separar de você agora, não sabendo que... – Ele emudeceu por alguns segundos e depois soltou um longo e pesado suspiro. – Não quero perder você.
- Me perder vai ser inevitável. E eu não quero sofrer vendo você sofrer por isso.
- Eu sofreria mais se não estivesse ao seu lado.
- Por favor... – A voz dela se perdeu em meio ás lagrimas. – Não faça isso. Eu só.... eu só vou embora, tá? A gente se fala.
Completou, embora soubesse que não iriam mais se falar. Ela nunca mais iria procurá-lo, nunca mais o faria sofrer como sabia que ele sofria agora. E ela tinha esperança que, em algum tempo, ele ia esquecê-la e encontrar outra pessoa que viveria por tempo suficiente para amá-lo como ele merecia. Ela desejava que ele encontrasse. Mas, no fundo do peito que lhe tirava a vida devagar, ela desejava que ele não a esquecesse. Que, em algum lugar de seu coração, ele guardasse a lembrança. A lembrança deles.

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