24 abril 2014

Constelação Amanda


Meu melhor amigo me encara meio de lado, meio frustrado, meio vencido. Já estou acostumada com sua hesitação, mas a derrota no azul acinzentado é de alguma maneira inédita e assustadora. Fico em silêncio enquanto continuo contando as estrelas de plástico que ele ainda tem coladas no teto. Como se ele nunca tivesse crescido.
- Eu acho que ela vai terminar comigo.
- Não seja medroso.
- Não é medo. - Ele responde rápido, ignorando minha censura. - É fato. Ela quer tanto de mim que já não enxerga que não tenho mais nada a entregar. É cansativo.
- Você quer terminar?
Eu pergunto, levantando uma sobrancelha. Ainda não me mexi e meus olhos ainda estão, de alguma maneira, colados na constelação que forma meu nome, lá perto da porta. Nem me lembro quantos anos já fazem que ela está lá, que eu estou aqui. Tenho sido constante na vida de Renato há tanto tempo, que o tempo deixou de significar qualquer coisa.
- Honestamente? Eu não sei. Mas não parece relevante, de todo modo. Ela vai terminar e pronto.
- Bem, se for assim, ela é uma idiota. Você é um amor e se ela não consegue ver isso, é uma vadia louca.
- Ah... Obrigado, eu acho. - Ele hesita e eu deixo escapar uma risada, me virando de lado para encará-lo também.- Acho que você é a única pessoa que pensa assim, no entanto.
- Não fique muito animado, é minha obrigação como sua melhor amiga.
- Mais pra minha única amiga, isso sim.
- Não seja dramático.
- Você sabe que é sério.
- Bem, então estou feliz que você tenha pelo menos a mim pra te amar. - Eu corto, sem paciência pra síndrome de solidão que o acomete de vez em quando. Ele suspira então, e meus olhos o engolem, decifrando cada detalhe de seu rosto como que por vontade própria. Eu e minha mania feia de me assegurar que ele está bem.
- E você me ama, não é?
- Claro. O que tem aí pra não amar? Qualquer um amaria.
- Você é tão positiva, Amandinha... - Eu escolho os ombros, incapaz de negar o óbvio. - As vezes eu me pego querendo que a gente fosse alguma coisa mais.
- Nunca vai acontecer, Rê. Eu sou sua melhor amiga.
- Tá, mas e se não fosse?
- Você está tentando se livrar de mim?
- Amanda. - Ele pressiona, a voz firme martelando meus ouvidos, e eu reviro meus olhos. - Se a gente não fosse melhor amigo, você ia me amar?
- Não sei. Quero dizer, como eu ia conhecer você com essa profundidade se eu não fosse sua melhor amiga? - Ele não responde, apenas me encara, o cinza dos olhos parecendo pinicar a minha pele em todo lugar. Meu humor subitamente se torna aborrecido. - Talvez. Provavelmente. Eu tento não pensar muito sobre isso. Feliz?
- Então você pensa sobre isso?
Ele pergunta, sorriso dançando nos lábios finos, um ar de vitória sobrevoando suas feições.
- Ah, por favor, Renato. Eu te conheço há anos. E, de alguma forma, a gente sempre acaba no seu quarto, assim, todo enrolado um no outro. Então é, o pensamento já me ocorreu vez ou outra. Eu tendo a ignorar.
- A gente tem mesmo essa mania de acabar todo embolado. -Ele concorda, um risinho finalmente escapando peito afora. Seu rosto se torna sério antes de continuar, no entanto - Então...  Se eu te beijasse aqui e agora... Não seria o fim do mundo, né?
- Não seria um apocalipse zumbi, não. - Concordo, incapaz de perder a chance. - Mas seria uma péssima ideia.
- Por que?
- Melhor amiga, lembra?
- Para de usar o título feito um escudo. Isso só quer dizer que a gente se dá bem.
Eu bufo, pouquíssimo feminina, e deixo minha mão escorregar janela afora, observando minhas unhas e fugindo da conversa em questão. Ele estica a própria mão, entrelaçando nossos dedos contra o vento suave do fim de tarde de maio. Não posso dizer que não é confortável.
- Você tem namorada, Renato. Sossega.
- Que você acabou de chamar de vadia louca, se não estou errado.
- Oops. - Eu digo, mas não estou envergonhada. Nós já passamos dessa fase há pelo menos uns cinco anos.
Ele se aproxima, dobrando o corpo para perto do meu e embora eu resmungue alguma reclamação, não me movo um centímetro. Ele cola o nariz no meu, a respiração quente causando uma revolução de pequeno porte no meu cérebro. Antes dele colar os lábios nos meus, eu já sei que não vai dar certo. O que não impede que o beijo dure eras. O que não impede que nossos dedos entrelaçados deixem a janela e passem a habitar meus cabelos. O que não impede que todas as palavras que eu pronuncie dali pra frente sejam contra os seus lábios.
- Essa não foi a melhor ideia que você já teve.
- Eu sei. - É tudo o que ele responde, o sorriso menino estampando o rosto familiar. - Mas e daí, né? Você sempre vai estar bem aqui. Vale tentar.
- Você está terrivelmente seguro de mim, para um cara sem outros amigos.
 - Não é como se você fosse a algum lugar. Seu nome não está escrito nas estrelas a toa, Amanda.
- Não seja cafona.
Eu aviso, e ele concorda, risada eclodindo entre nós tão forte que não tenho certeza de que também não sai de mim. Respiramos devagar até restar só o silêncio, nossas testas ainda coladas, nossos olhos tão próximos de uma maneira quase familiar. Não consigo evitar lembrar todas as noites que passamos juntos, lado a lado, falando besteiras e dissecando heróis de histórias em quadrinhos. Não consigo evitar pensar que isso ia acabar acontecendo, cedo ou tarde. A gente sempre se entendeu um pouco demais. A gente sempre esteve bem ali.
- Acho que eu vou terminar com ela.
- Faz o que quiser.
E ele me toma ao pé da letra. Ele me beija de novo.


13 abril 2014

Vai (E não volta mais).

Eu quero tirar teu gosto dos meus lábios. Por que queima a pele e machuca a alma e deixa cicatrizes em lugares muito bem escondidos de mim que você tenha sido o último a me ter tão perto, entre os braços, selando meus lábios com os teus e entrelaçando teus dedos pelo meu cabelo, fazendo correr pela minha espinha o melhor tipo de arrepio. E me mata que o ultimo abraço que me tirou do chão seja teu, que a ultima vez em que eu fechei os olhos e me senti em casa foi cercada de você. Me machuca que eu não possa lembrar o que é doçura sem ter você como referência. Você estava aqui. Você esteve comigo. E eu te senti, só você e você inteiro, em todos os cantos de mim que tem consciência e sentem saudade.
E eu te odeio por isso. 
E odeio ainda mais que eu não consiga esquecer, não importa quantas fotos eu rasgue ou quantas vezes eu grite pras paredes e pros amigos e pras pessoas passando na minha calçada que eu quero mais é você longe da minha mente. Você ainda está aqui e eu ainda consigo ver claramente os teus olhos quando eu fecho os meus, aquele estúpido tom de verde iluminando minhas memórias como uma droga de um farol. Eu odeio isso. Eu odeio que eu queira tanto vê-los de novo. Que eu queira estar perto de novo. 
Então, por favor, faça parar. Me faz parar de querer rasgar meu cérebro em tiras apenas pra fazer cessar os pensamentos tão súbitos e constantes sobre você. Sobre nós. Então, por favor, vá embora. Deixe minha mente de uma vez. Deixe meus lábios de uma vez. Deixa minha vida de uma vez.
E não volta mais.

06 abril 2014

Funeral.

Sua vida não era ruim. Não era absurda, impossível ou horrorizante. Não era pesada, incontrolável nem daquelas de dar dó. A vida fez com ela apenas o que já havia feito com tantos outros. Mas ela, que nem era de papel nem nada, se desmanchou com o impacto. Assim, bem aos olhos de todos, bem a vista, sem pudor. E foi se retorcendo, encolhendo, diminuindo até caber num quarto (na cama), numa caixa (de madeira), numa gaiola tão pequena que a física da coisa parecia impossível (a vida).
E ela mesma bateu a tampa e se escondeu lá dentro, covarde que sempre foi, e pediu, por favor, para deixarem-na em paz. E lá dentro, apertada, encolhida, desfeita e compactada, ela respirou fundo e, sem forças, sem vontade e sem querer, decidiu que nunca mais.
E enterraram a caixa no chão.




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